A arte da aprendizagem
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Aprendendo com o vento.

Se não é ensinar, é o que?

Antes, afirmei aqui que tem que acabar com essa coisa de ensinar, ao definir que um artista da aprendizagem deve criar condições favoráveis às aprendizagens significativas² e reflexivas dos outros. Aqui vou aprofundar essa frase bonita, de uma forma mais conceitual, filosófica, viagem mesmo.

Freire não está errado quando diz que ensinar existe um monte de coisa | escrita lá no livro dele | eu estou apenas ressignificando a palavra, criando um parâmetro de diferenciação para o exercício dessa reflexão. Vou fazer também com nosso personagem principal.

Vou chamar o professor | que aqui, só ensina | de artista da aprendizagem, ou simplesmente artista. Sua produção artística se dá dentro do outro, quando um outro aprende algo. O artista não sabe o que produz. Não consegue descrever especificamente o que fez, não coloca suas obras em galerias. E mais: ele produz obras sem tocá-las. Suas obras vivem dentro dos outros, inatingíveis. E vou chamar aluno de outro porque fica mais filosófico.

Vou retomar a ideia de infinitude do outro. Uso-a mais para sustentar que ensinar é impossível. Infinito é uma das mais belas palavras, apesar de não ser tão gostosa de falar. Gostoso de falar é bigorna, zé ruela. “Cê deixou cair a bigorna, seu zé ruela.” Até perdi a concentração aqui.

Uma palavra para falar sobre o outro poderia ser desconhecido. Dizer “O outro é desconhecido” seria um passo inicial interessante, contudo, além de feia, dá a ideia de que o outro era conhecido ou pode, em algum momento, se tornar conhecido. Não dá. Sempre vai haver no outro um sentimento, uma emoção, uma história, uma marca na pele, um sofrimento, sempre vai haver algo, tornando-o infinito para o artista.

O outro é sempre reticências.

Como produzir arte no infinito?

Não dá para saber exatamente o que e como alguém aprende, seria como jogar uma pitada de sal no mar e esperar que a pitada continue como pitada. Não se sabe como aquilo se espalha, como se mistura ou se o vento leva.

Aproveito para destacar uma das grandes dificuldades da humanidade: definir a quantidade exata do que é uma pitada de sal na culinária. Acho o fim. Em receitas, é tudo certinho: uma colher disso, duas xícaras daquilo. Vou fazendo tudo certinho. De repente, “uma pitada de sal”. Pessoas com mãos pequenas que cozinham a própria comida devem ser mais saudáveis. E pessoas com mãos grandes fazem comidas mais temperadas.

O fato é que o artista deve criar as condições para que cada um escolha sua pitada de sal e faça o movimento de salgar seu próprio mar. Vamos entender esse movimento, esse acontecimento.

O artista precisa garantir a aprendizagem, como acontecimento. Ela precisa acontecer. Lembre de qualquer acontecimento. O que lhe é característico é alguma coisa se tornando diferente. Algo muda, cresce, diminui, some, aparece, apaga, surge, enfim, muda, fica salgada. Então entre o início e o fim do acontecimento ocorre uma mudança, uma movimentação, uma diferenciação entre o estado inicial e final.

Aprendizagem é movimento.

Aprendizagem é um acontecimento quando, em um indivíduo, seu estado final de conhecimento é diferente do inicial. O indivíduo precisa ir embora diferente do que ele chegou.

Mas repare, a aprendizagem é um acontecimento interno, não dá para ver acontecendo | às vezes aparece uma agitação física, como ondas no mar | só o próprio indivíduo sente o sabor da mudança. Outra coisa que não dá para saber é a diferença entre estado inicial e final, ou seja, o professor não consegue criar o movimento exato, por isso não seria possível ensinar, mover. Educar seria forçar o movimento. Tentar enfiar a mão dentro da mente do indivíduo para encaixar o estudado, a pitada, para fazê-lo diferente. Não. O artista deve oferecer as condições para que o indivíduo movimente seu próprio estado de conhecimento. Condições para que a aprendizagem aconteça.

Além de ser impossível ensinar, quem educa | o professor | não sabe o estado inicial do conhecimento pois o outro é infinito. A consciência do conhecimento, da dimensão do conhecimento, apenas o próprio indivíduo tem. Assim, o indivíduo pode dizer “Já sei.” quando o estudado não movimenta o estado inicial do conhecimento. O que se aprende precisa ser diverso daquilo que já se sabe.

Ou ainda, o estudado de tão distante do conhecimento inicial do sujeito, lhe é tão diferente que não causa movimento algum. Não se liga, porque ficou lá boiando, veio o vento e levou, pois ele não tem significado para o outro.

A potência do acontecimento

Estamos sempre aprendendo, cada novo acontecimento da vida tem potencial de aprendizagens, por isso podemos aprender na escola, na rua, no Youtube, sozinhos na ilha, provocados pelos movimentos do mar, ou bebendo água.

Mas a palavra chave dessa frase é potencial.

Pois encher um copo com água tem baixíssimas condições de oferecer aprendizagens. Quantas vezes você já fez isso? Então, em uma das viagens pela CVC, adquire um copo de cerâmica. Ao encher esse copo, percebe uma alteração no barulho. Opa!

Nova aprendizagem: um copo de cerâmica faz barulho diferente, o gosto da água também ficou um pouquinho diferente, não o gosto…. a temperatura. Seu conhecimento sobre a interação entre água e diferentes materiais muda. E você sente um frescor maior no seu corpo. Se sente melhor. Por fim, começa a pensar se alguém também sente esse frescor, se alguém tem água fresca para beber, se alguém tem água para beber. Se todo mundo tem água para beber.

O artista vê a potência de aprendizagem nos acontecimentos do cotidiano.

Nessa reflexão sobre o copo, começamos a construir os princípios fundamentais dessa teoria. Vou chamar de teoria. Decidi agora. Vim reler o texto e achei melhor chamar de abordagem.

As condições favoráveis

Você aprendeu um monte de coisas para tirar a carta de motorista, depois ficou em total desequilíbrio dirigindo por aí. Em um dado momento, você se equilibrou e… sei lá, demorou um ano para isso. Nesse um ano você aprendeu mais um monte de coisa. Ficou mais tranquilo e seguro. E assim continuou dirigindo por 10 anos. Nesses dez anos, o que você aprendeu sobre dirigir? E você repetiu a prática de dirigir, repetiu e repetiu, mas por ser praticamente sempre a mesma, não está apto a dirigir um Fórmula 1. Fazer infinitas vezes a mesma coisa, a mesma atividade, repetir o mesmo ano não te faz aprender mais. Mas então você muda para Londres, uma experiência totalmente diferente de dirigir.

A aprendizagem exige diversidade de experiências para acontecer.

A necessidade do conhecimento aqui tem objetivo: compreender a realidade. Uma melhor compreensão da realidade pode te ajudar a resolver problemas, como escolher melhor o material do seu copo para beber água. Ou como não se perder nas finanças, nos planos da vida e no limite do pacote de dados. Contudo, para isso, a realidade não pode passar despercebida, precisa ser questionada. Ouso dizer que a pergunta é o que nos diferencia das outras espécies. As perguntas sobre a realidade, as coisas, a natureza, as relações, as hierarquias é que movimenta a história humana.

A aprendizagem exige questionamentos.

E esse movimento já produziu muito conhecimento, pois muitas perguntas já foram feitas, refeitas, questionadas e discutidas. Como membros da espécie, temos todo o conhecimento humano já produzido que nos ajuda a compreender o mundo. O indivíduo precisa ter acesso ao conhecimento para produzir seu próprio conhecimento.

A aprendizagem exige conhecimento.

O sabor do conhecimento

Vou continuar mais um pouco a pensar o conhecimento como sal, mas agora envolver outros temperos, pois estou com um pouco de fome nesse instante que escrevo. Mentira, não é fome. É vontade de chocolate mesmo.

Falando nisso, tem um negócio que todo mundo aprendeu errado na escola. Quando se fala sobre o corpo humano, apresenta-se o sistema digestivo inteiro. Os professores não dizem, talvez por desconhecimento científico mesmo, que existem dois sistemas digestivos. O salgado e o doce. Veja, por mais estufado, entupido de feijoada, macarronada, nhoque, churrasco que você esteja, não aguentando mais nada, prestes a explodir, quando surge o mousse de maracujá, o bolo gelado, o brigadeirão, seja lá qual for seu doce preferido, você come. Como pode isso? A única explicação plausível é haver dois sistemas digestivos.

O conhecimento precisa ter sabor duplamente significativo para ficar irresistível, como uma sobremesa de domingo depois da macarronada.

Aprofundando algo já discutido, o artista precisa ter uma noção de como está o estado de conhecimento inicial do indivíduo para que ofereça algo próximo suficiente para fazer sentido e distante suficiente para causar estranhamento. Inspirado pela zona vygotskyana, o conhecimento não pode ter sabor de jiló, fígado, barrinha de cereal ou qualquer outra coisa dessas ruim. Mas também não pode ser o arroz e feijão do cotidiano.

Esse seria o primeiro aspecto da aprendizagem significativa.

O que se aprende terá significado em ser aprendido se tiver laços entre o já conhecido.

O segundo aspecto tem a ver com a vontade. Eu não vou utilizar necessidade, pois nem todo o conhecimento é necessário quando é aprendido. Por isso acho vontade mais adequado. A pergunta que o artista deve fazer é: depois do almoço, o que temos vontade? Chocolate, claro. Chocolate é vida.

Deixando para trás meu lado chocólatra, é preciso estar atento se há vontade do indivíduo em aprender, se há interesse, se faz sentido, se responde angústias, perguntas, se há motivações, enfim, se tem significado para o indivíduo. O professor cobra vontade, interesse e motivação, “presta atenção!”, o artista provoca, instiga o interesse.

O que se aprende terá significado em ser aprendido se houver vontade em aprendê-lo.

Por isso na frase digo aprendizagens significativas².

Só para diferenciar os dois aspectos, o artista quer provocar aprendizagens sobre o risoto |sabendo que o outro já come arroz e feijão | mas descobre que ele está com vontade de bolinho de arroz. E, por meio do bolinho, ele chega ao risoto.

Poderia ter buscado palavras diferentes para caracterizar estes dois aspectos, mas acho que fica mais legal colocar o número dois pequeninho mesmo. Eu gosto de matemática.

A fluidez do conhecimento

Como já disse aqui, adoro metáforas. Nesse texto estou usando várias, sem nenhuma conexão entre elas: mar, sal, sobremesa, risoto. Agora vamos falar do suco de maracujá.

Eu adoro frutas, sempre experimento, sempre gosto. Mas eu não gosto muito do suco da fruta. Por exemplo, suco de morango, manga, pêssego, uva, até tomo, mas não gosto muito. Prefiro comer a fruta.

Isso não tem nada a ver com o assunto, só lembrei mesmo.

Mas sabe quando você deixa o suco de maracujá parado e ele vai se separando em camadas? Fica lá, um tempão parado. O que você faz antes de beber? Mexe.

Mexer o conhecimento é reflexão.

Você mistura o que aprendeu, com o que já sabe, com uma memória, com uma história, com um sentimento, faz comparações entre o que te dizem, o que aparece na TV, se angustia, fica feliz.

Talvez a reflexão seja o que mais falta o professor oferecer. Pois a aprendizagem não é uma continuidade, uma sequência de mais e mais novos conhecimentos. O professor se preocupa com o conteúdo, currículo, em entupir o aluno com conhecimento.

Tão importante quanto aprender, é refletir sobre o aprendido.

O momento da reflexão é o mais delicado para o artista, ele não tem noção nenhuma do que está acontecendo com o outro, pois quem precisa mexer | refletir | é o outro. Só resta ao artista mesmo criar as condições favoráveis, já descritas.

Imagine alguém que aprendeu muito conhecimento ao longo da vida. E nunca refletiu. O suco está extremamente concentrado na superfície. Mas no copo todo, só água, sem nenhum sabor.

Uma abordagem

Agora só falta inventar um nome para tudo isso aí. Eu gosto de inventar nomes. Eles precisam sempre dizer além do que querem dizer, então abordagem do suco mexido não serve muito. Vou chamar de Abordagem Marklienista de Aprendizagem. AMA, ownnnnn que sigla bonitinha.

Está escutando? Preste atenção…. é um professor dizendo, ao ler este texto, “No papel é tudo bonitinho. Quero ver na prática!”

Esse professor diz isso porque, em sua vida, só teve professores.


Leu tudo? Óia. Agora só falta comentar e compartilhar!


2 thoughts on “A arte da aprendizagem

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