Ser professor
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É legal?

Hora da escola? Vou me esconder aqui, num vou nem f#@#&*$.

A partir de um momento, sim. Nesse texto vou apresentar algumas reflexões sobre essa coisa de não trabalhar e só dar aula. Mas já lhes digo: nem sempre foi assim, quando comecei na carreira só trabalhava, era chato. Quando descobri que poderia também dar aula, passei a amar. Vamos entender tudo isso.

A vida me levou a ser professor | ou pensar como um | desde os 15 anos. Depois de ter me formado no CEFAM, com uns 19 anos comecei a atuar. Por alguns anos, fui apenas aquele professor que trabalhava o ano inteiro para pagar a viagem ao Mercosul | aqui eu fui | ou Nordeste | aqui não | ou Europa | nope | em janeiro. Professor CVC. Daqueles que resumem todo o seu ano dizendo as viagens que fez mais o nome da escola em que trabalhou com alguma crítica à gestão da unidade, a sua turma ou ao governo.

Como um ser humano convive com 35 outros seres humanos por um ano, todos os dias, e não tem nenhuma história divertida para contar?

Porque esse professor não entende as crianças e adolescentes como seres humanos. São apenas trabalho. Algo a ser cumprido. Como guardar 35 latas de molho de tomate em uma caixa e mandá-la para a série seguinte. Realmente, uma pessoa com o trabalho de guardar latas não vai ter muitas histórias, só vai falar das viagens e quanto tempo falta para se aposentar.

Em 2019, o professor CVC está feliz. O que as lideranças acéfalas do governo atual mais querem é que o professor se limite a ser empacotador de latas. Talvez não pareça, pois ele também vai para as manifestações. É que, além de estar preocupado com seu próprio bolso, nem ele aguenta a chatice de sua própria aula.

No começo eu era assim. Peço desculpas para minhas primeiras turminhas. Eu as tratei como latas de molho de tomate.

Delas, só lembro das viagens.

Voltam

Uma coisa muito óbvia na profissão de professor, mas não tão evidente que, quando descobri, mudou minha vida, foi:

As crianças voltam no dia seguinte.

“A família da Fulana não presta, nem liga para a menina, olha, chega toda suja”. Essa criança volta no dia seguinte com a mesma família e toda suja.

“Fulano não presta atenção em nada, ele é burro, não quer aprender.” Essa criança volta no dia seguinte sem querer aprender.

“Sicrana precisa de laudo, essa é a verdade.” Essa criança volta no dia seguinte, com o laudo na mão, e as mesmas deficiências.

“Também, não aparece ninguém na reunião!” Essa criança volta no dia seguinte e o responsável continuará não vindo nas reuniões.

“Ninguém corta a unha do Sicrano, olha o tamanho, vai machucar alguém!” Essa criança volta no dia seguinte com a unha grande.

E elas voltam, voltam, voltam, voltam. As crianças voltam 200 vezes. Então um professor pode repetir duzentas vezes essas frases, todos os dias do ano letivo. Ou não. Mas o que fazer?

1º Planejar

Havia assumido um cargo efetivo no Estado, pela primeira vez estaria com uma turma o ano inteirinho. Acho que já no primeiro mês cheguei à conclusão acima: “putz, eles continuam vindo todos os dias.” Eu lembro: sete horas da manhã, parado em pé, olhando para 32 latas. Ali percebi que eram seres humanos, pois eles perceberam como eu não fazia a mínima ideia de como seriam as nossas próximas cinco horas juntos. Ali, tomei a primeira decisão:

“Meu, você precisa planejar.”

Quando ouvia a música do Fantástico sentava em frente o computador no domingo e planejava a semana inteira em um negócio chamado Semanário, um nome não muito criativo.

A Educação não é muito boa em dar nomes para as coisas: diário, semanário, nota, projeto, lousa. Olha a astronomia: supernova, pulsar, energia escura, exoplaneta.

A coisa começou rodar de forma tão, tão eficiente que durante meu dia deixei de pensar em questões sobre a aula e isso não me trouxe mais incômodos e desesperos. Ainda hoje sempre dá um friozinho na barriga antes de qualquer aula: “Vai ser uma merda.”. Mas estar consciente de tudo que vai acontecer me tranquiliza logo quando começa. Hoje consigo já prever até as possíveis perguntas ou reações e oferecer respostas mais elaboradas e pensadas.

2º – Aprender

Uma vez propus um clube de leitura a um grupo de amigos. Era dezembro. Uma amiga, professora alfabetizadora, disse: “Ah, mas vamos começar em fevereiro, porque não gosto de ler nas férias.”

Como eu convenço o cara a aprender se eu não gosto de aprender?

Essa historinha que professor precisa estudar a vida toda é balela, ou melhor, é pelos motivos errados. Dessa forma, parece existir necessidade apenas de saber mais sobre as novas ideias educativas. Nada a ver, não se resume a isso. A ideia é que o professor tenha um olhar crítico sobre a arte da aprendizagem.

Professor precisa ser sempre aluno.

Precisa ser prazeroso e habitual aprender. Claro, é importante estudar sobre a própria área mas também é fundamental ter a rotina de, sempre e sempre, acessar o conhecimento que a humanidade produziu. Além disso, evita-se oferecer uma excelente aula sobre a terra plana, criacionismo ou signos.

Ser professor é trabalhar com a humanidade, sabe? Por isso o hábito de aprender deve ser articular com a diversidade humana, acessando conhecimento de suas mais diferentes áreas: o samba, as partículas, as matrizes, Manoel de Barros, as pirâmides, a primavera, o rio e a lombada. Como estas coisas funcionam? Articular diferentes conhecimentos oferece ao professor uma real noção da complexidade que é a humanidade.

3º – Brincar

Quando você entra na aula do Professor CVC é perceptível o clima de chatice no ar. A matéria chata na lousa, ele mesmo com cara de bunda e os alunos pior ainda. Parece um grande acordão de ode à chatice, com STF e tudo. Para que uma aula seja considerada boa por mim ela precisa:

Ou fazer chorar ou fazer rir.

Quando o Professor CVC ler isso, vai dizer: “Então preciso me vestir de palhaço?”. Para evitar esse tipo de pensamento, defino brincar como uma mistura de conhecimento, risada, carinho, emoção, tensão, toque, diálogo, compartilhamento, cuidado, troca e, fundamentalmente, seriedade.

Não há circunstância mais séria do que a brincadeira, momento quando o ser humano está mais concentrado, deixa de lado passado e futuro.

A coisa chata não exige concentração. Por isso o inverso de chato é divertido que significa desviar, fazer esquecer… do que? Do chato.

Uma vida chata precisa de muita diversão.

Agora quando você brinca, é outra coisa. Não é desvio, é imersão, dedicação, concentração, foco. Uma aula boa deve parecer uma grande brincadeira de aprender.

Por fim, eu

Professores tratam alunos como latas por também serem tratados assim. Inclusive os alunos os tratam como latas também. Mas veja que eles pouco podem fazer para mudar o climão de chatice. Por outro lado, o professor CVC coloca o clima de sua sala | não apenas as condições | na mão do prefeito, do sindicato, das famílias, reclama de todo mundo. Eu descobri que sou gente, não sou lata esperando ser levada, que o clima da minha aula está em minhas mãos. Também quero chorar ou rir, me emocionar.

Toda aula precisa ser brincadeira também para mim.

Eu não gosto de ensinar

Professor é quem ensina. Discordo por completo. Pois é impossível ensinar. Se entendi direito, para Emmanuel Lévinas, o outro é infinito. Ao conversar com uma pessoa, sua experiência de vida, suas aprendizagens, sua cultura, sua ilha é tão vasta que é impossível ver seu final. Conseguimos ver onde as coisas e objetos terminam. Mas não vemos o fim de uma pessoa.

Faz de conta que cada pessoa é uma folha. O professor CVC vai ensinar a letra A. Escreve a letra A bem no meio da folha, lá dentro da pessoa. Olha aí, ensinou. Mas a folha da pessoa é tão gigantesca que ela nem viu o professor escrevendo o A. Talvez na verdade escreveu na borda da folha. Ou escreveu de azul e ela nem gosta de azul. Só sei que a pessoa já rabiscou um monte de coisa em cima.

Eu não gosto de ensinar porque isso não acontece, de fato. A frase “Eu ensinei” nem deveria existir, pois teria que ser possível entrar no infinito do aluno, enfiar um conhecimento lá e conseguir verificar se o objeto ensinado está lá mesmo. E ainda fazer um checklist para ver se ele aprendeu direito, igual está na minha cabeça. Por isso para mim:

Um professor deve criar condições favoráveis às aprendizagens reflexivas e significativas² dos alunos.

Estou caracterizando os termos ensinar e aprender para evidenciar as diferenças entre uma prática em que o professor se preocupa com ele mesmo: “Eu ensinei, aprende quem quer.” e uma em que a preocupação é o outro: “O que preciso fazer para o outro aprender?”. A segunda opção, dada a complexidade, terá texto próprio. A primeira opção é, obviamente, a mais fácil.

Complexidade

Uma das profissões mais fáceis do mundo é ser professor. Partindo da ideia de que é um cara que ensina, para se tornar professor é necessário conhecer muito algum assunto e saber se expressar sobre ele. Na verdade nem isso, só saber muito sobre o assunto serve.

Advogados, economistas, engenheiros, médicos, motoristas de autoescola. Qualquer um que fale sobre um assunto para um público acha que pode ser chamado de professor. E, por mais absurdo que pareça, estão certos! Se… se… professor é quem ensina.

Agora inverta. Ninguém se aventura a defender uma causa na justiça, definir uma política econômica, desenhar uma planta de prédio, realizar uma operação, dirigir um caminhão. Muitas práticas sociais apresentam uma complexidade impeditiva, não aparece de uma hora para outra um professor de matemática que não conseguiu emprego e passou a desenhar prédios. Mas vai ter engenheiro que dá aula de engenharia e, inclusive, de matemática.

É fácil ensinar. Qualquer um faz. Não precisa de pedagogia, não. Entenda sobre um assunto, escreva vinte minutos na lousa sobre esse assunto. Explique. Pronto, mais fácil que entregar pizza. Perceba, alguns profissionais, por juntarem alguns slides e falarem por três horas se autodenominam professores.

Sim, todos esses professores que você pensou, se em todas as suas lembranças, ele está em pé, falando ou explicando um powerpoint e só, se essa é a única estratégia utilizada… ele é um palestrante. Assim, nem de escola precisamos. O TED resolve muito bem toda essa transmissão de conhecimento.

A aula ideal seria aquela em que um profissional de uma outra área olhasse e falasse:

Que difícil fazer isso aí.

Outra coisa. Quase todo mundo tem duas décadas de experiência em escola. Isso, teoricamente, autoriza cada indivíduo a falar com propriedade sobre educação. Seria como você, ao sempre viajar de avião, se achar capaz de pilotar um. Todo mundo sabe o que deve ser feito para resolver os desafios da área.

Primeiro, a profissão se apresenta como algo tão simples, qualquer um faz, segundo, todo mundo tem experiência. Daí qualquer um opina, até ator pornô. Já que é assim, vou opinar sobre tudo também. Vou até criar um transtorno.

TDAHCC

Uma amiga me procurou uma vez contando sobre sua amiga, perdida e preocupada com a receita médica de seu filho, dada por um neuro alguma coisa, indicando tomar Ritalina, pois tinha TDAH. Moleque com seis anos, vai vendo.

Perguntei de onde surgiu a hipótese que o moleque tinha algum problema. Claro, da escola. “Conte-me sobre a escola.” Resumindo, escola tradicional, preocupada em educar. “Tem algo que ele goste de fazer?” Assistir Youtube, fica horas concentrado e atento. Em poucos minutos, foi fácil encontrar o diagnóstico:

Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade a Coisas Chatas.

Coloca o moleque em uma escola preocupada em fazê-lo rir, pular, brincar, aprender de forma significativa, com carinho, onde ele se sinta seguro e acolhido, onde o conhecimento que produza se grude ao conhecimento que ele tem. Mas não. Coloca o moleque sentado, ouvindo alguém explicar coisas nada a ver com ele, o dia todo. TDAHCC.

“Então você está falando que TDAH não existe???” Toda profissão deve ter sua versão CVC. Essa pergunta deve ser do psicólogo CVC.

Na verdade, o professor CVC não fabrica latas, mas indivíduos com TDAHCC que se tornam insuportáveis, indisciplinados, estressados, deixando o professor CVC mais ansioso em fechar pacotes de viagem, até se aposentar. E as viagens serão as suas únicas histórias para contar.

Histórias para contar

Toda convivência, toda relação humana tem apenas um propósito: virar lembrança. Mas aqui não falamos de qualquer uma, falo da lembrança que é igual trovão: quando chega na mente, o raio do sorriso já chegou no coração.

Quantas lembranças significativas desse tipo um professor construiu com seus 35 serumaninhos ao longo das 800 horas que compartilharam durante o ano?

Ahhhh… olha aí os raios chegando em mim. Eu amo ser professor, pois, ao estar com gente, podemos transformar conhecimento em boas histórias para contar.

Eu tenho várias, um dia conto.


Leu tudo? Óia. Agora só falta comentar e compartilhar!


1 thoughts on “Ser professor

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