Minorias e Discursos
Leitura: 7 minutos
Como é ser jabuti?

Eu sou minoria ou maioria?

Você já se fez esta pergunta? Eu já e aqui apresento aonde cheguei. Antes, vou conceituar os dois termos da pergunta. Na verdade, inventei termos mais adequados, porque esses dois aí são muito ruins. Dá confusão. Aproveitei e inventei mais um monte de termos.

Poder Social

A ideia de Poder Social é a capacidade de um grupo/indivíduo influenciar e determinar as práticas sociais aceitas dentro de uma coletividade. O grupo ou o indivíduo adquire poder social por meios econômicos, sociais, políticos, culturais, intelectuais ou, o mais provável, uma mistura de tudo isso.

Vamos pensar juntos em um exemplo de coletividade muito presente em nossa cultura, na verdade, fundamental: a tradicional família brasileira. Nela, quem possui o poder social? Acertou! E quem são as minorias?

As minorias, nesse caso, são: a amante, a mulher, os filhos e a empregada sem direitos.

As minorias são os grupos com baixo poder social e que vivem em desvantagem, pois não possuem força | em sua mais nobre definição | para garantir e determinar suas próprias condições de vida.

Vamos falar da confusão que dá. Em nosso exemplo, existem quatro filhos. Eles são a maioria, mas continuam sendo minoria. Ué!
O termo minoria, atualmente, se refere ao tanto | pouco ou nulo | de poder social que o grupo tem. Contudo, ao se falar em maioria, agora sim, se refere à parte com maior quantidade de indivíduos. Zoado. Por isso não acho muito adequado os termos.

Olha, enquanto as minorias insistem neste termo, permitem um presidente dizer que defende a maioria | quando, na verdade, defende os grupos protagonistas: mercado, elite, homens brancos |, confundindo as pessoas.

Acredito que grupo coadjuvante | e grupo protagonista, por consequência | seja mais adequado do que minoria. Vou atualizar a pergunta:

Eu sou coadjuvante ou protagonista?

Depende. Pela minhas características físicas, inicialmente, eu sou do grupo protagonista. Já viu minha foto? Homem, branco, jovem | mesmo que você saiba minha idade, o texto é meu, então sou jovem, não discuta. | Ainda sou descendente de português, olha só. A cara do colonizador.

Ah, estou escrevendo esse texto agora, mas esta reflexão apresentada aqui sobre mim nem sempre existiu, surgiu e acompanhou o avanço atual deste país que descobriu sua diversidade nesta década.

E assim fui percebendo que não apenas minha capacidade de fazer as coisas me levou a determinados lugares, pois ao chegar nestes determinados lugares boa parte das pessoas se pareciam comigo. Eu entendia as injustiças sociais e blá, blá, blá, mas não colocava minha identidade em questão:

Se fosse negro, mulher, trans, eu teria chegado onde cheguei, no mesmo tempo e com mesmo esforço?

Passei a me questionar, questionar minhas capacidades e conquistas e compreender que meu percurso não foi construído apenas por mim. Todos os outros, um por vez, segmentados em grupos coadjuvantes, foram barrados e impedidos de atuarem de outra forma, deixando o caminho livre para que eu chegasse aonde quer que fosse.

Veja, não estou desprezando minha capacidade, afinal, eu caminhei, não fiquei parado. Estou apenas dizendo que o percurso estava mais livre, sem tantos obstáculos.

Aqui vale uma ressalva, o caminho que falo é todo dentro da cidade que cresci. Fui forjado na Periferia, em escolas públicas, ônibus lotados, ruas de terra, futuro sem planejamento, muito menos projeto de vida. Ao lado do muleque, do catarrento, da loira oxigenada, da negra brava, da menina bonita, classificada como tal por possuir os estigmas globais | de rede Globo. Ao adentrar na Cidade de São Paulo, descubro que existe outro tipo de branco | o verdadeiro |, manufaturado nos bares da Madalena, nas baladas da Vila Olímpia, nas universidades públicas, nos intercâmbios, na efervescência cultural de saber cantar e tocar, com aquela consciência social limitada ao próprio mundo, inconsciente do impacto do Leite Ninho em sua vida para que tivesse condições de desenvolver seu projeto de vida. Ou seja, inconsciente de seus privilégios.

Enquanto um direito for garantido só para você, não é direito, é privilégio.

Bom, sou protagonista, na periferia, mesmo sendo a minoria | de branco e homens. Só que em São Paulo, faço parte da maioria da cidade, mas coadjuvante | branco de periferia. Viu como depende?

Isso que só falei de questões físicas. Vamos falar da comportamental.

A Faixa Gayzista

Nos últimos tempos, passei a usar uma faixa na cabeça para segurar a cabeleira. Minha relação com meu cabelo é difícil. Quando ele está mais curto, fica liso. Quando cresce, aparecem os cachos, cachos prontos para guerra, principalmente quando acordo, pois se apresentam para o dia totalmente armados. O risco de pegar piolhos seria que poderiam construir algo como Burj Khalifa no meu couro cabeludo que ainda assim não chegariam à superfície da cabeleira.

Daí me sugeriram usar uma faixa. Mó legal, muito prática, com ela, consigo enxergar o mundo e arrumo o cabelo de forma muito mais rápida. Quem me sugeriu disse:

Você vai sentir como é ser julgado pela aparência.

E não é que isso aconteceu? Um amigo disse: “O que você está usando no cabelo?” Ao ouvir minha resposta, fez sinal de reprovação. Por ser, ou melhor, por se sentir indivíduo representante de um grupo protagonista, o amigo teria a capacidade de determinar como grupos coadjuvantes devem se comportar. Nesse caso, ao usar a faixa, para ele, eu me aproprio de uma vestimenta de gay | assim me torno um grupo coadjuvante | oferecendo, assim, a liberdade para ele aprovar ou não minha vestimenta, ao mesmo tempo que deixa claro que assim, deixo de ser homem, protagonista.

Diferença Representativa Intencional

Esse exemplo, sutil no cotidiano, mas claro em suas intencionalidades, expõe como grupos protagonistas utilizam seu poder social para definir o que pode ou não pode para todos os outros como também aproveitam para associar determinadas características ou comportamentos dos grupos a, normalmente, coisas ruins e negativas. Você já ouviu várias dessas, como mulher não sabe dirigir, ou índio é preguiçoso. Já falei um pouquinho disso aqui.

O discurso é tão massivo e repetitivo que se naturaliza. Sobre mulheres no volante, por exemplo. Tão imersas em um mundo no qual elas não seriam capazes de dirigir, não se sentem seguras e tranquilas, confiantes em suas capacidades. Isso fortalece a ideia posta pelo grupo protagonista dos homens, pois tanto eles quanto elas reforçarão essa ideia, mesmo que, estatisticamente, as mulheres dirijam melhor. E apesar de o país ter mais da metade de sua população de mulheres, a maioria dos motoristas são homens.

Você já deve ter encontrado muitas mulheres que sentem receio de dirigir e até concordam que os homens dirigem melhores. Mesmo que o indivíduo possua características de um grupo coadjuvante, ele discursa em prol do grupo protagonista e silencia sua própria voz. Então, olha só, mesmo que o grupo coadjuvante seja maioria numérica, ele diminui ainda mais seu poder social, pois seus próprios indivíduos estão apoiando os grupos protagonistas.

O curioso é que essa alienação de indivíduos que seriam de grupos coadjuvantes é discursada como liberdade pelos grupos protagonistas. Vou fazer uma reflexão sobre uma figura pública antes.

Celso Pitta

Segundo prefeito negro da cidade de São Paulo, marcado por um governo escandalosamente corrupto. Ah, pera! É uma análise que faço com muito cuidado, muito além de “Mas ele era corrupto mesmo!” que você já acabou de pensar. Veja como ele é uma das poucas figuras políticas que ninguém defende, nem seu próprio padrinho Paulo Maluf. As denúncias chegaram a envolver quase 4 bilhões, praticamente metade do orçamento da cidade inteira de São Paulo na época. É muito sem noção esse valor, para um prefeito que ficou menos de quatro anos no poder.

Imagine se um negro, nos anos 90, estudado, mestre em economia na Inglaterra, tivesse sido um excelente prefeito, organizado as contas da cidade, obras de impacto e tal? Mesmo que fizesse ações não muito sociais e progressistas, mas que a gente pudesse dizer que um prefeito negro foi um dos melhores prefeitos da maior cidade do país?

O que temos guardado em nossa cabeça é justamente o contrário: o prefeito negro foi um dos piores prefeitos que essa cidade já teve. E bota pior nisso.

Imagine de quem você vai lembrar se um outro negro se candidatar ao cargo. De novo, a questão é simbólica, além de análise de caráter, porque nessa história, isso na verdade, pouco importa. É tão forte, mas tão forte a associação entre corrupção e Celso Pitta que você deve estar achando um absurdo essa minha ideia. Funciona. E o que isso tem a ver com liberdade?

Liberdade de não ser e falar

Ao negativar os grupos coadjuvantes, seus indivíduos, almejando ser mais, são atraídos a se comportarem | e discursarem, como já disse | como membros dos grupos protagonistas. A vontade de ser o outro, em um mundo livre e solto.

Um mundo tão livre que te permite libertar de si próprio.

Na prática é que a voz do indivíduo do grupo coadjuvante se anula, abrindo espaço e legitimando os discursos dos grupos protagonistas. Perceba, então, que, de fato, o discurso e postura individual não estão limitados às suas características, por isso encontramos bizarrices como mulheres contra o feminismo, negros periféricos de direita, brasileiros defensores do Trump. Indivíduos, anulados, de grupos coadjuvantes defendendo grupos protagonistas.

Por isso, eu, periférico, não consigo votar em candidato de banqueiro. Periférico, preciso buscar viver sem explorar o outro. Só que eu sou homem, não tão branco e jovem | Já estou quase me convencendo que sou jovem mesmo | E agora? Existe o outro lado: indivíduos de grupos protagonistas se alinhando aos coadjuvantes. Meu comportamento também é livre para não reforçar estereótipos e preconceitos.

Liberdade Empática Sociológica

Inventei mais um termo. Acho que isso seria um trabalho que gostaria de fazer: inventar termos e títulos. A pessoa chega com um artigo, uma invenção, um livro, uma música. “Tá aqui o nome, custou dez conto.” O mais puro capitalismo criativo.

Vamos ao conceito de liberdade empática sociológica | LES. Retomando, mesmo que apresente características de grupos protagonistas, é possível se colocar no lugar do outro, sociologicamente falando, em busca de compreender o que lhe passa.

Naturalmente, quando ouvimos empatia, pensamos em nos colocar no lugar de outra individualidade. Aqui não. É olhar sociologicamente o outro e buscar sentir o que lhe passa, tendo determinada característica. Voltando ao caso do Celso Pitta, seria olhar o negro na política, e não exatamente a personalidade dele. A mulher no trânsito, a criança sem mãe, é tentar se atentar, por meio de um único indivíduo, como esse pudesse causar reflexão sobre todo seu grupo, dentro da sociedade.

Há, em nosso país, diferentes lugares chamados Senzala, como este aqui, que recebeu atenção da mídia em 2017. A LES te permite se colocar no lugar de um negro | e não de seu amigo negro | e tentar compreender como ele se sentiria almoçando em um restaurante com esse nome e quadros de escravidão.

A ideia de liberdade aqui está relacionada em extrapolar o entendimento de que senzala não tenha significado algum para ti, branco, pois a escravidão não está, historicamente e intencionalmente, associada aos brancos. “É só um nome de lugar que existiu em nossa história”. É entender como este é também um pensamento social, determinado ao grupo protagonista branco | no caso, ignorar as marcas da escravidão | e que é possível se libertar disso.

Vivemos em mundo social e diverso, com nossas individualidades carregadas de construções sociais feitas de forma intencional. Eu passei muito tempo, de forma automática, com determinadas construções postas a mim. E refletir sobre ser minoria ou maioria nos permite, além da compreensão, uma postura contribuinte em um mundo em que os diferentes grupos tenham autonomia e liberdade para determinar seus próprios destinos.

Uma postura que não é dada. A LES precisa ser praticada continuamente, com intenção, conscientizada dentro de si, mas interminável e para mim, já dura muitos anos | droga, não sou mais jovem.


Não gostou? Não conte para ninguém. Gostou? Comente, compartilhe!


3 thoughts on “Minorias e Discursos

  • 21/02/2019 at 11:29 AM
    Permalink

    Olá Marcelo. Li seu texto e gostei muito. É lúcido. Mas tenho duas sugestões: 1- Em um texto rico de ideias, pra nós, leitores, publica -lo em duas vezes ajudaria muito, por vários motivos. 2- A LES é um princípio doutrinário cristão. A leitura do sermão do monte ( Mateus 5) com certeza ampliará os horizontes para maiores explanações do conceito. Abraço e Deus abençoe

    Responder
    • 21/02/2019 at 1:59 PM
      Permalink

      Olá, obrigado pelo comentário! Como assim duas vezes? Dividir em dois? E quais motivos?

      Responder
  • Pingback:Pontes de Afeto – Marklienista

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *