O Poder e a Gente
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O poder corrompe?

Minha fofice te corrompe.

Vivemos em um país que possui Grandes Verdades Fundamentais, ou GVFs | inventei uma sigla | entre elas, muitas associadas ao campo político. Aqui, vou tentar explorar as entrelinhas e intencionalidades de duas: o poder corrompe”e, considerando o contexto, todo político é corrupto”.

Grandes Verdades Fundamentais

Frases prontas, construídas historicamente, com roupas de neutralidade, mas cheia de terceiras intenções. Com muitas histórias e ao mesmo tempo não possuem uma história, pois não é possível saber ao certo quando a primeira pessoa disse, em que lugar do país foi ouvida, se sua origem é religiosa, folclórica e ainda, como se consolidou ao longo do tempo com determinadas palavras. Mesmo que alguma tenha data e local, esse tipo de frase não vem com sua certidão de nascimento, nós as utilizamos para explicar os fatos, de forma superficial, encaixando o objeto de análise no quadradinho da GVF. São muitas e, inevitavelmente, cada um de nós já teve contato com todas. Para tornar concreto o conceito vamos a algumas:

  • Bandido bom é bandido morto
  • Mãe é tudo igual, só muda de endereço
  • É dando que se recebe

Só três tá bom. A primeira tem sua origem nos anos 80, as seguintes construídas por aí e as três usadas, quase sempre, quando não se tem nada relevante para dizer, pois sendo grandes verdades elas são, teoricamente, indiscutíveis e, por assim serem, oferecem um instante de prazer ao interlocutor, pois ao dizê-las, receberá o É mesmo.” de todos. Afinal, que chato argumentará o machismo da frase “Mãe é tudo igual” que determina comportamento padrão da mulher-mãe, afinal são todas iguais e só são isso, além disso, consolida a responsabilidade do cuidado para a mulher? Aqui uma sugestão de inversão da frase para evidenciar as intencionalidades:

Pai é tudo igual, só vive em outro endereço.

Ah! Frases de Senso Comum

Sim, mas não, pois elas possuem alta carga de intencionalidade que nos permitirá aqui aprofundá-las. Frases de senso comum cumprem a mesma função, contudo são mais leves, daí a diferenciação. Algumas:

  • Devagar se vai ao longe
  • Está na hora da onça beber água

Para a exploração de nossas frases escolhidas, é importante construir um cenário que dê sentido ao uso delas.

O Contexto de Luta

Por mais que existam diferentes lutas em nossa cotidianidade, sobre escolhas, identidades e algumas poucas sobre coletividades, a luta de classes se mantém, pelo simples fato delas existirem, incluindo a luta contra sua naturalização como condição dos indivíduos: busca-se dizer que pobre é pobre porque nasceu pobre. Nossa discussão permeará por isso, também.

Mas quando falo de luta, não é a quebra de vidraças bancárias, abaixo-assinados virtuais, manifestações que fecham avenidas ou votos em candidatos sem chance de vitória.

Falo dessa luta que se faz todo dia, em nossas escolhas profissionais e pessoais, em nossas conversas, em nossos passeios, compartilhando o que achamos sobre as coisas do mundo, principalmente sobre as pessoas do mundo.

Por exemplo, a luta que falo é quando você, proletário, calcula e lhe dá, de presente, um jantar em um restaurante bacana, de bacana.

Que sensação de poder sem igual! É uma vitória, você não sabendo direito para que serve aquele monte de garfos e facas, quanto mais segurar dois pauzinhos! Com o olhar perdido nas outras mesas, vendo os bacanas, tentando descobrir como que come o que você pediu de jantar. Mas ali, com toda sua pose, toca o foda-se na cara da burguesia, esta toda assustada com seus modos sinceros de se sentar e de mastigar.

Falo dessa luta sem lutar.

As Barreiras Invisíveis

Para combater estas invasões cotidianas na vida das classes abastadas, utilizam-se GVFs específicas para fazer com que a própria classe trabalhadora se mantenha, cordialmente, onde está. Ela afeta diretamente essa luta diária, modelando-a de tal forma que nos coloca em posição de contribuinte na manutenção do status quo burguês. Vamos explorar a nossa escolhida para ver como isso acontece.

Quando vemos um igual, proletário, ascendendo e se envolvendo em círculos de poder, ele não pode cometer um deslize que a gente já cai matando. Às vezes, nem precisa cometer nada, já lhe atribuímos o erro, a corrupção, afinal, sabemos que o poder corrompe. Lembrou que você já fez isso? Puxa na memória: aquele jogador, ator, político, vizinho que logo recebeu sua desconfiança, apenas por viver o progresso social. Essa situação se agrava quando você sabe que o indivíduo não tem estudos, afinal estudo é sinônimo de ascensão, outra ideia muito difundida como verdade.

É genial essa ideia, pois nós, trabalhadores, direitos, corretos e carregados de civilidade não queremos ser corrompidos, queremos preservar pelo menos nossa honra.

Atualizando essa discussão para a contemporaneidade, talvez caminhe-se para consolidar a ideia, antes restrita ao proletariado, de que qualquer minoria, atingindo o poder, explicite seu grau de corruptibilidade. Isso que dá pobre no poder amplia-se para “Isso que dá negro/mulher/trans/etc no poder.”

Se inevitavelmente o poder corrompe, melhor a gente ficar longe dele.

Agora com seu conteúdo à mostra, ela se torna visível em diferentes contextos, mas o mais evidente deles é o político, por motivos óbvios. O círculo político, criado para absorver as angústias populares e concretizar as vontades de mercado (elitistas) torna-se, mesmo que de maneira ilusória, o espaço de disputa do poder. Por consequência, recebe o carimbo de corrompido, todo político é corrupto. Se um de nós consegue, por caminhos desafiantes, entrar na política, coisa boa não fez, precisou entrar no jogo. Mas não é só isso.

Ela também consolida nosso olhar para quem já está | e sempre esteve| na política, no poder. Por mais contraditório que isso pareça e é, mesmo sabendo que o poder corrompe

Acreditamos que quem já tem o poder em mãos, não foi corrompido.

A corrupção não se dá apenas na conquista, mas também na manutenção do poder, por aqueles que não o tinham. Torna-se necessário e constante jogar a política, por meio da corrupção para, assim, o indivíduo proletário se manter por lá e não voltar para cá.

Nesta ideia, o burguês, por outro lado, não precisa ser corrupto, afinal, o poder lhe é atribuído de forma quase que natural pois sua posição na sociedade, sua vida já cheia de privilégios, não faz com que necessite jogar o jogo, permitindo que o exerça, sem a obrigação de extrapolar as legalidades e as convenções sociais de boa conduta.

O poder corrompe quem não o tinha, pois pode não tê-lo mais, melhor a gente ficar longe dele.

Na cotidianidade das rodas de conversa no almoço do trabalho, no churrasco, na praça de alimentação do shopping, nas duas horas do ônibus, os indivíduos proletários se convencem de que o poder corrompe, delimitando aquela luta no restaurante a apenas uma exoticidade para a burguesia, causadora de medos, mas sem de fato ameaçá-la.

Certos de que só é possível chegar ao poder se corrompendo, aguardamos ansiosamente pela suspeita de corrupção de nossos próprios representantes para dizer “não falei?”

Pela pré-desconfiança, cordialmente e continuamente, autoflagelamos nossos avanços em inserir nossos pares em posições privilegiadas dentro dos círculos políticos e econômicos. E nos sentimos tranquilos ao ver o poder com os indivíduos que já o tem.

Por diferentes aspectos, caminhamos para encontrar uma intencionalidade fundamental desta GVF:

A ideia de que o poder corrompe contribui em sua manutenção nas mãos dos mesmos.


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